Mariana Kotscho
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» RACISMO E ADOÇÃO

Você não tem medo de a criança ser revoltada?

O jornalista e colunista Antoune Nakkhle conta sobre a experiência de adoção da filha. Um papo de pai

Antoune Nakkhle* Publicado em 25/08/2022, às 06h00

Antoune e sua filha Gabi, de 18 anos. - Foto: arquivo pessoal
Antoune e sua filha Gabi, de 18 anos. - Foto: arquivo pessoal

"Você não tem medo de ter uma criança preta adotada e ela ser revoltada?"  Não, não tenho medo. Acredito que os profundos elos entre as pessoas nem sempre são exclusivamente sanguíneos.

Se eu acreditasse que ser uma criança adotada e negra fosse determinante para minha filha ser “revoltada”, talvez eu não adotasse. Isso não passa pelo meu espaço aéreo.

A vida de cada um de nós produz sequelas em nossa trajetória. Um criança pode ficar revoltada porque diariamente vê sua mãe ser espancada pelo pai alcoolizado. Feroz fica um filho ao ser expulso de casa por ser gay. Ou uma filha que é abusada pelo padrasto e, muitas vezes, fica tudo por isso mesmo. Revoltada fica uma filha que não tem o que comer em casa por seus pais estarem desempregados. Todos estes fatos provocam, naturalmente, muita tristeza.

"Adotada e negra é muita pesado, ela é apenas uma criança, pensa nisso."

As pessoas foram ensinadas que adoção é uma cena mais ou menos assim: uma mulher pobre, sem marido, geralmente preta, irresponsável, sem cabeça, insensível, que teve relação sexual sem se proteger, na hora do “bem bom” não pensou em nada além de seu desejo e depois, quando engravidou não quis nem saber e deu seu filho. Rejeitou a criança, virou as costas e vida que segue. E o pai? Nem é lembrado, ele é homem – a culpa é da mãe desnaturada. E a coitada da criança foi adotada por uma família caridosa. Um milagre. Uma história digna de contos de fadas.  

Muitos partem do pressuposto de que uma pessoa adotada é revoltada. O que revolta é a mentira na adoção de um filho. Certamente não é a adoção em si, mas como ela é encarada pelos pais adotantes e adotivos e o que isso reflete no seu filho vindo por adoção. Poucos de nós se perguntam o que realmente faz uma pessoa feliz.

A adoção como um todo – tanto por quem entrega seu filho como para quem decide ter um filho por adoção – existe para que todos os lados sejam felizes, independente dos motivos que abrem esta porta.

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Não é receita de bolo. A adoção implica, antes de mais nada, um desejo real e um comprometimento consigo mesmo, não é um tapa buraco para a dificuldade que um casal ou uma pessoa tem de gerar um filho. Quando a adoção é genuína, as frases feitas carregadas de conceitos e preconceitos frágeis que ouvimos diariamente perdem o sentido e a força.

Até a tal revolta de uma criança por ser adotada a que tanto se referem passa a ser pura especulação.

Tudo bem, é lindo adotar, ainda mais um filho preto, mas quem vai sofrer é ele. Tem que ser preto? A criança vai crescer revoltada. Tô te falando porque sou seu amigo...

Por trás destas perguntas há muito preconceito e racismo. Importante se atentar a isso. E se ela for preta? Ela tem motivos para ser revoltada? Não sei. A palavra é indignação por vivermos numa sociedade tão racista e preconceituosa - para dizer o mínimo.

Eu apenas imagino o que ela possa sentir. Sou pai dela, mas sou branco. O que posso afirmar é que me sinto indignado.

Sou pai de uma mulher preta. Escolhi combater o racismo e a discriminação.

*Antoune Nakkhle é jornalista, assessor de comunicação e imagem e pai da Gabi, de 18 anos. Mulher preta e adotada.