Mariana Kotscho
Busca
» PRIMEIRA INFÂNCIA

Mais de 2 milhões de crianças de até três anos não estão em creches por dificuldade de acesso no Brasil

Levantamento foi realizado pelo Todos Pela Educação; Priscila Cruz dá entrevista exclusiva sobre a importância da primeira infância no Brasil

Maria Cunha* Publicado em 12/04/2024, às 16h00

A primeira infância ocorre dos 0 aos 3 anos - foto: Freepik
A primeira infância ocorre dos 0 aos 3 anos - foto: Freepik
“A desigualdade tem um berço que é a desigualdade na primeira infância. Então há a necessidade do Brasil enfrentar o início desse problema, que infelizmente define e talvez seja o defeito mais cruel do nosso país”, Priscila Cruz, presidente da ONG Todos Pela Educação.

De acordo com um levantamento do Todos Pela Educação — movimento da sociedade civil para organizar respostas técnicas, de articulação política e de debate público em relação à melhoria da qualidade da educação pública brasileira — o Brasil tem cerca de 2,3 milhões de crianças, de 0 a 3 anos, que não frequentam creches por alguma dificuldade de acesso ao serviço.

Apesar de não haver obrigatoriedade de matrícula, a oferta de vagas em creches é dever constitucional e um direito das crianças e famílias. Aproximadamente 6 em cada 10 famílias gostariam que seus filhos frequentassem as mesmas, mas apenas 4 são atendidas.

Veja também

Em entrevista ao portal Mariana Kotscho, a presidente do Todos Pela Educação, Priscila Cruz, afirma que uma parte importante da melhoria da qualidade da educação vai acontecer se conseguirmos garantir que todas as crianças tenham direito ao desenvolvimento cognitivo, social, emocional e físico na primeira infância.

“A gente tem uma situação em que a pobreza afeta demais as crianças. A gente tem muitas delas numa situação de muita vulnerabilidade socioeconômica e também de violência, quer dizer, as crianças mais pobres também são aquelas mais expostas à violência, que têm menos acesso à saúde e à educação de qualidade”, explica ela. “Então elas vão sobrepondo dificuldades e barreiras que começam a ficar muito difíceis de serem transponíveis.”

A partir disso, a presidente do Todos Pela Educação explica que se há o desejo de aumentar o acesso à educação e as políticas econômicas, de emprego, de saúde, de sustentabilidade e de segurança pública no futuro, todas elas terão o seu resultado limitado ou potencializado pelo que for feito com a primeira infância hoje. “Se a gente conseguir cuidar das crianças, todas as outras políticas vão ter resultados muito melhores, além do que as crianças terão a vida melhor também.”

Nesse contexto, Priscila Cruz foi convidada para ser parte do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Sustentável (Conselhão), um conselho de pessoas da sociedade civil que aconselha o presidente da República. “Quando eu entrei no Conselhão, eu propus um grupo de trabalho que vai elaborar uma Política Nacional para a Primeira Infância no Brasil. Ela é uma política pública, algo para ser executado, e ela tem como premissa uma governança interfederativa, ela é de todos”, pontua a especialista.

No entanto, se engana que acredita que ainda não existe um política de primeira infância integrada. A questão é que, enquanto este deveria ser um trabalho do Estado, são as próprias mães que acabam por integrar as necessidades dos filhos. Assim, elas que se esforçam para levá-los no posto de saúde para vacinar, correm atrás de vagas nas creches, se mobilizam em suas comunidades para exigir que haja tratamento de água e esgoto, além de ainda terem que combater o racismo sofrido por suas crianças.

“É sempre assim, quem mais sofre, mais sofre. É a mãe mais pobre, é a mãe que é o pilar econômico da família, é aquela mãe que fica muito tempo no transporte público. Esse é o retrato da mãe brasileira. E é ela que carrega o fardo de integrar uma série de políticas para os seus filhos, justamente ela que já tem tanta coisa no colo e pouco apoio. Então a gente precisa, como sociedade, ajudar essas mães.”

A criação do Cadastro Nacional

De acordo com Priscila, toda política que pretenda ser interfederativa e integrada precisa partir de uma base de dados e informações unificada, a qual irá permitir a também integração de um protocolo ou de, por exemplo, um trabalho do governo federal com os municípios ou dos estados com os municípios.

“A gente está no século 21, trabalhar com o digital é uma tendência irreversível. Todas as comunicações são em cima de cadastros e de dados que estão em um banco, em sistemas digitais. Se a gente quer fazer uma política integrada que não seja só um ‘catadão’ de políticas, é fundamental partir de uma base integrada.”

Em razão disso, em dezembro de 2023, um Grupo de Trabalho — presidido por Priscila Cruz — dentro do “Conselhão”, entregou ao governo federal as primeiras propostas para subsidiar uma uma Política Nacional para a Primeira Infância no Brasil. O projeto prevê, por exemplo, a criação de um “cadastro nacional” com informações das crianças brasileiras – unindo dados de desenvolvimento e registros dos atendimentos em saúde, educação, assistência, cultura, esportes, segurança, segurança alimentar e outras áreas. Além disso, a ampliação de atendimentos integrados e a criação de um aplicativo para famílias acompanharem o desenvolvimento infantil também estão previstos.

Segundo Priscila, existem campos de sinergia que poderiam acontecer entre a educação, a saúde e a assistência social se houvesse, de fato, a unificação da base de dados. Um exemplo disso seria a vacinação de crianças na creches, pois ao invés de a criança ter que ir para um posto de saúde, o posto poderia vacinar onde as crianças diariamente estão. Isso pouparia o deslocamento das mães e ainda garantiria que as crianças seriam imunizadas.

Outra vantagem de ter protocolos integrados está relacionada às visitações de agentes de assistência social, os quais vão nas famílias para poder orientar as mães sobre o trabalho que tem que ser feito com as crianças. Com informações unificadas, o visitador poderia ir muito além das instruções sobre a casa e falar também de políticas públicas de saúde e educação.

Priscila ainda reforça que a política precisa ser mais forte para quem mais precisa e dar mais para quem menos tem. “Eu sou fã da palavra obsessão. A gente nunca vai enfrentar a desigualdade se a gente não for obsessivo em garantir que os cidadãos que estão numa situação de maior vulnerabilidade e que precisam superar barreiras mais altas consigam subir mais do que os demais.”

A presidente do Todos Pela Educação também faz uma ponderação importante. Apesar de o Brasil ser um dos países em que uma porcentagem maior da população tem acesso à tecnologia e à mobilidade — o que garantiria o sucesso de uma política integrada digital —, nem todas as famílias tem acesso ao celular ou à conectividade. Em razão disso, também haverá uma parte importante da iniciativa em meio físico, com pessoas dando orientações aos que necessitarem.

“A gente tem um equívoco no Brasil que todo mundo concorda que tem que priorizar a primeira infância, a criança e a educação, mas quando a gente vai ver, de fato não é priorizado. A criança que hoje tem dois anos, ela vai sair da primeira infância em um ano, é rápido. Então a gente precisa ser rápido também, precisa ter esse senso de urgência forte", conclui Priscila. "Todo mundo tem que defender a criança. Não precisa ter como foco profissional a criança ou a primeira infância. A gente precisa levar essa mensagem mais adiante. Tem que começar, tem que fazer."