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Gravidez não é doença: a violência por trás de uma frase

Os dilemas vividos pelas mulheres que trabalham e engravidam e a violência por elas vivida, que pode ser velada, ou, muitas vezes revelada

Thamires Pandolfi Cappello* Publicado em 07/03/2024, às 06h00

A professora Thamires Cappello
A professora Thamires Cappello

Eu engravidei do meu segundo filho enquanto matinha uma rotina intensa de trabalho como advogada, além de novos projetos de pesquisas e estudos. Eu estava fazendo um curso acadêmico em São Paulo.

Nesta gestação, em decorrência da vida corrida e agenda atribulada, os sintomas iniciais foram mais brandos, mas não imperceptíveis, tive episódios de fortes enjoos, cansaços extremos, sonolência, além de inchaço nas pernas e dores pelo corpo.

De toda forma, segui em frente, afinal: gravidez não é doença, não é mesmo?

No meio da minha correria diária, atrasada após uma crise de vômito matinal – sai apressada para chegar em uma aula. Ao chegar na sala, comecei a sentir uma sensação de morte, literalmente. Estranhei o mal-estar que trouxe uma mistura de boca seca, tontura, falta de ar e palpitação.

Era a tão temida hipoglicemia, só quem já sentiu para entender o que é um sentimento de morte causado pela falta de açúcar no sangue.

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Um tanto quanto desesperada e já pensando na saúde do bebê, sinalizei à docente com um grito que interrompeu a aula. A docente, sem perceber a situação ou entender o que estava ocorrendo, retornou ao seu monólogo.

Eu segui na busca de uma barra de chocolate que pudesse me ajudar naquele momento, o que não surtiu efeitos. Pálida, trêmula, passando muito mal e sem qualquer assistência pela responsável pela turma, entrei em pânico e aos prantos pedi a ajuda dos colegas de sala que me acolheram e me retiraram do local.

Ao ser retirada, não me lembro de muitas coisas, pois desmaiei no chão do corredor da instituição, em frente a sala de aula.

Desmaiada contei com a ajuda de alguns colegas de turma que conseguiram acionar os bombeiros, que, mesmo transcorrido um lapso de tempo, prestaram os primeiros socorros até a minha transferência para o meu obstetra.

Me lembro até hoje quando retomei minha consciência, a bombeira que me atendeu – uma jovem que acabara de ser mãe – estava muito preocupada com a situação em demonstração de plena empatia.

Poderíamos encerrar a história por aqui, porém, algo relevante aconteceu. Após o meu desmaio e saída da sala, iniciou-se um discurso que foi finalizado com a fatídica frase: Gravidez não é doença!

É, caro leitor, a violência por trás de uma frase como essa é gritante. Uma frase utilizada ao longo dos anos para menosprezar os sintomas do estado gravídico e fazer com que pessoas que gestam ultrapassem seus limites, sustentando a ideia de que a gravidez é plena, romântica e um momento de esplendor que transborda saúde.

Poucos meses atrás, um desembargador do judiciário brasileiro também deflagrou uma frase como essa contra uma advogada gestante que solicitou adiamento de uma sustentação oral em decorrência da iminência do parto.

No meu caso, o mais agravante foi que a frase veio de outra mulher. E o que eu pretendo relatando essa experiência?

Alertar que frases como essa e o menosprezo de sintomas gravídicos podem nos fazer pensar que estamos erradas, somos insuficientes e que devemos ultrapassar nossos limites, colocando muitas vezes em risco, nós e os nossos bebês.

A gestação pode ser encarada de diversas formas, pode ser desejada ou indesejada, de risco habitual ou de alto risco ou até evolutiva e não evolutiva se findando em um aborto espontâneo.

A questão é que a gestação traz um turbilhão de mudanças no corpo da pessoa que gesta. Os hormônios sofrem alterações significativas, a circulação sanguínea se modifica, o intestino e bexiga se comprimem, os batimentos cardíacos aceleram, o metabolismo se transforma, enfim, todos órgãos vitais se adaptam a falta de espaço, no objetivo comum de gerar uma nova vida.

É um processo fisiológico comum e esperado, porém muitas vezes negligenciado. Todas essas mudanças acarretam sintomas que podem ter intensidades diferentes a depender do corpo de cada um.

Vão existir pessoas que sentem enjoos fortíssimos, desenvolvem hemorroidas, edemas nos membros, cansaço extremo, sonolência, micção frequente, alteração de temperatura, dores – muitas dores e, ainda, de brinde, uma supressão das defesas imunológicos do corpo, ufa.

Imaginem chegar em um pronto-socorro sem estar gestante e declarar todos esses sintomas? Seria um tanto quanto preocupante passível de internação.

Mas, seguimos com o eco das vozes que dizem: gravidez não é doença.

Pois é. Não é, mas parece. Pelo menos para mim.

No meu caso, por um golpe de sorte, o quadro de hipoglicemia foi revertido e mesmo com pico de hipertensão sofrido pelo estresse causado pelo episódio, meu bebê nasceu 3 meses depois, lindo e saudável.

A lição que fica é que a gravidez não é uma doença, de fato. Mas dói e pode se manifestar como uma. As dores emocionais e psicológicas também são reais e abalos verbais podem ser o gatilho de alterações hormonais significativas.

A obrigação de toda sociedade com gestantes deveria ser redobrada, assim como o cuidado deveria ser humanizado e intensificado, especialmente por responsabilidade social e humana, afinal quem aqui nasceu de um pé de feijão?

A negligência com os sintomas das gestantes traz uma falta de respeito com a própria força criadora da humanidade.

Minha experiência serve de alerta para toda pessoa que encontrar com uma gestante: acolha, cuide. Afinal você já esteve ali no lugar daquele bebê.

Ah, vocês devem estar se perguntando: e a pessoa que falou isso? Ela segue com sua vida e com sua consciência – ou não - de que contribuiu para um episódio triste como este, mas que, por sorte, teve um final feliz.

*Thamires Pandolfi Cappello é professora, pesquisadora, advogada, estudante e mãe de dois.