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Pai branco, filha preta

Antoune é pai de Gabi. Ele é branco e ela é preta. Um papo de pai e filha. Um papo de amor, de lições e aprendizados

Antoune Nakkhle* Publicado em 21/03/2022, às 06h00

Pai e filha: a construção de uma relação de amor
Pai e filha: a construção de uma relação de amor

Muita gente me pergunta: como é adotar? Ah, você não teve medo de adotar? Por que você adotou uma criança negra? Deu certo a adoção? É difícil essa realidade na prática? Você a ama como se fosse sua filha mesmo? E tantas outras questões inimagináveis.

Estou aqui apenas para falar da minha realidade, do que vivi e experiencio diariamente. Muitas questões sobre as quais hoje reflito, na época em que adotei minha filha nem sempre eram claras. Definido mesmo sempre foi o meu forte desejo de ser pai.

Desde criança eu sabia da minha vontade de ser pai. Achava muito legal a ideia de não apenas ter filhos biológicos, mas também adotados, e que fossem negros, por que não? Algumas coisas na vida apenas sentimos. Tinha para mim que a adoção era apenas mais uma forma de ter filhos com quem se ama ou mesmo sozinho, se fosse o caso. As outras colocações presentes no vocabulário social eu desprezava – porque quando se tem o desejo de ter um filho, o que importa é o real querer.

Após 10 anos de casamento, me deparei com a realidade de engravidarmos mais de uma vez e perdermos gestações espontaneamente, repentinamente. Situação difícil e dolorida, quem passa por isso sabe bem.

Sempre pensava: ok, a adoção também é uma possibilidade. Havia preconceito e dúvida. Embora a adoção sempre tivesse feito parte, de uma forma ou de outra, da realidade de nossas famílias, eu me perguntava se aquele era o momento certo para sugerir esta opção para minha parceira de vida na época.

Quando descobrimos que queríamos ser pai e mãe sobre todas as coisas, tomamos a decisão: vamos adotar uma criança. Foi uma decisão tão segura que parecia a descoberta de que estávamos grávidos biologicamente como das outras vezes ou de que nossa filha havia nascido. Estávamos felizes. Sabíamos que uma adoção sempre gera uma série de questionamentos por parte das pessoas. Ainda mais em nosso caso, que não nos importávamos com a cor de nosso rebento. Embora estivéssemos contentes com nossa decisão, era uma novidade para nossas vidas e o medo de uma escolha até então nunca feita muitas vezes se fazia presente. Assim como o medo vinha, ele ia embora.

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Amor é amor e ponto final – isso ajudaria a ultrapassar qualquer obstáculo. Continuo acreditando nisso cada vez mais e não apenas para a questão da adoção –, mas não sabia como era a sensação de viver esses desafios até então teóricos.

Quando se tem certeza de que o mais importante é ser pai, tudo fica mais fácil, embora a dor do preconceito, da discriminação, da reação da família, dos questionamentos daqueles que nos amam tenham me chocado e revoltado. Mas quando eu pensava na possibilidade de ter nossa filha ou filho nos braços, tudo passava. De verdade.

Sempre presenciei em meu dia a dia o preconceito e o racismo à minha volta. Na casa de meus pais, morava a Esmeralda, carinhosamente chamada por nós de Dáda, a empregada que trabalhava em casa desde que nasci. Ela era negra e usava uniforme – em um edifício em que havia entrada de serviço. Imagine cada situação que presenciei ao lado dela no elevador. Outro ponto: minha mãe tinha um defeito físico no pé esquerdo e, por isso, não usava saias, não ia à praia ou à piscina com a gente. E, claro, todos perguntavam por que sua mãe nunca vem à piscina? E tantos outros questionamentos.

Tudo isso para dizer que eu achava que já tinha experiência quando o assunto era preconceito ou discriminação. Não tinha. Experiência zero. Experiência quem tinha eram minha mãe e a Dáda.

A vida acontece na velocidade de um respiro e eu, minha parceira e nossa filha, Gabriela, vivemos situações inusitadas. Fomos vivendo; sentindo, refletindo. Havia diversos episódios de preconceito em relação à adoção e também de discriminação,  racismo, o que fui percebendo aos poucos. Ué, mas ela é sua filha? Sua mulher é negra? Vocês acabaram adotando porque não conseguiram ter um filho de vocês, né? Ela sabe que é adotada? Adoção é uma coisa linda, mas sempre fica aquela vontade de ter um filho seu mesmo, né? Você vai receber em dobro o bem que está fazendo! Eu pensava: não é isso, não é nada disso. E a raiva nessas horas? Sempre esteve lá, nunca a neguei quando chegava até mim uma atitude insensível, preconceituosa e racista. Sempre reagi com firmeza, combati e combato. Às vezes parece uma profissão.

É essencial distinguir o que o ofende na fala do outro: seria porque você precisa de aprovação? Ou porque toca em seus próprios preconceitos para os quais você pouco dá atenção? Ou porque dói presenciar isso na vida da sua filha?

Sei que todos nós somos racistas e discriminamos. Somos machistas, homofóbicos, capacitistas, etaristas, gordofóbicos, transfóbicos e muito mais. A discriminação, o racismo, o machismo, principalmente contra uma mulher negra e adotada, os comentários maldosos, tudo isso pode aparecer em todos os momentos da nossa vida – de um jeito ou de outro.

Como se preparar para isso, como colaborar na formação da minha filha (que é a principal atingida)? Reafirmando, para mim mesmo, para Gabi e para os que me cercam, com minhas atitudes, os valores nos quais acredito. Estando sempre ao lado dela. Isso resolve a dor? Não. Mas torna possível enfrentá-la. Todos nós temos questões – sejam traumas vividos na infância ou provocados por nós mesmos, por nossas sensações internas. Você precisa olhar para isso e sempre buscar maneiras de ultrapassá-las – do contrário, não desça para o play.

Não estou aqui para minimizar os sofrimentos que o racismo e a discriminação causam na vida de uma pessoa e na sociedade, de forma alguma. Mas acredito que falamos de lutas que sempre farão parte de nossa vida, de nosso trabalho. De nossas relações humanas.

Não sei como é ser pai de uma garota branca parecida comigo, pés parecidos, com traços do rosto semelhantes. Mas sei: é muito gostoso ser pai de uma garota como Gabi. Além de ser uma pessoa muito legal e do bem, é negra, veio por adoção e, assim como a mãe dela e eu, sabe que amor é amor e ponto final.

*Antoune Nakkhle é jornalista, assessor de comunicação e imagem e pai da Gabi, de
18 anos. Mulher preta e adotada. Um pai branco de filha preta.
paibrancofilhapreta@gmail.com