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Notas de Escurecimento, uma coluna de Plínio Camillo: Meu irmão Paulo

Todas as terças, aqui no site, a coluna Notas de Escurecimento trará temas relacionados com a Literatura Negro-Brasileira

Plínio Camillo Publicado em 30/01/2024, às 06h00

Imagem Notas de Escurecimento, uma coluna de Plínio Camillo: Meu irmão Paulo
Notas de Escurecimento. Salve! Esse será o nome desta coluna, que trará para a discussão temas relacionados com a Literatura Negro-Brasileira: suas autoras e seus autores, lançamentos, discussões teóricas, entrevistas e alguns contos de minha lavra. Esse primeiro conto é Meu Irmão Paulo. Boa leitura e, por gentileza, deixe os seus comentários no e mail. (Plínio Camillo)

Meu irmão Paulo

Ser irmão mais velho sempre, para mim, foi bom demais, morou?! Irmão mais novo é um parceiro! Ouve você em tudo e qualquer parlatório. Olhos atentos. Firmes. Você ensina. Cuida.

O meu irmão Paulo era quatro anos, sete meses e oito dias mais novo que eu! Também é só um ano, dez meses e quinze dias mais novo que a nossa irmã, Paula, a irmã do meio. Sou o mais velho!! Bacana!!! Sempre cuidei deles. Dos dois! Dava exemplo!

Nunca troquei fraldas, porém dei mamadeira. Vi se estava muito quente ou muito frio. Pegava as roupas na gaveta. Cuidava, dava muita água, principalmente depois que ele pegou desidratação duas vezes em Pedra Alta. — Já tomou água?

Ensinei a andar de bicicleta ... e as “regrinhas do bem-viver”: Chegando, de manhã: Bom dia. Chegando, à tarde: Boa tarde. Chegando, à noite: Boa noite. Indo embora, sempre: Até logo! Usou a mão perdeu a razão. Ter irmãos menores é muito bom!!

paulo
Paulo, meu irmão

Onde podia levava o Paulo. Sempre assim. Juntos. A molecada dizia que ele era a mascote ou o meu chaveirinho. O meu tio João nos chamava de: a dupla dinâmica, Pretinho e Preto, os cantadores da capital

Sim, sou um negro de cor. Meu irmão de minha cor. O que te peço é luta sim Luta mais! Que a luta está no fim...

Palmas. Aplausos. E vários bis. Para os irmãos mais novos, a gente ensina atravessar a rua e aprende ter paciência, cada um é cada um, né? Para irmãozinho, lê para dormir e descobre que é divertido ouvir o que ele sonhou. Para a irmãzinha, você brinca de boneca, sempre sendo o pai que tem uma identidade secreta de super-herói e salva o mundo antes do jantar.

Paulo, comigo aprendeu a chutar com os dois pés e me vi orgulhoso quando pegou tudo no gol. Paula, a pular corda. Sal e Pimenta. Para irmão mais novo, a gente descasca laranja e de surpresa, recebe um pedação de bolo, da festa que ele foi. Para a irmã mais nova, você recebe um carinho quando está com febre alta.

O irmão, torce para o seu time! A irmã, gosta dos mesmos desenhos. No final do ano de 1971, meio de dezembro, a minha mãe, sem querer, no jantar, comentou com o meu pai que no ano que vem, 1972, o Paulo ia para o primeiro ano! Foi um grande bafafá! O meninão estava com tudo e estava muito prosa!! Falava mais que a matraca. Só pensava que ia para a escola!

Ninguém teve sossego até que conseguiu de presente de natal, o calcado preto e duas meias três quartos. Um short azul marinho do padrinho e a camisa branca da minha tia Edith, que teve de desmanchar uma blusa da minha irmã e apertar, pois, o Paulo era um carrapato!

Janeiro inteiro ele ficava querendo que a gente dessa lição. Nem eu ou a Paula fizemos. Alucinado Paulo foi nas coisas da minha mãe, que era professora, e pegou uma cartilha antiga. A vantagem de ser filho de professores, meu pai e minha mãe eram, que bobeou você aprende a ler e escrever. Além de ter cartilha de todos os tipos; cartilha do Pedrinho, cartilha da Estrela, cartilha da Lulu e a mais famosa e irônica: Caminho Suave...uma brasa, mora?!?

Eu soube ler aos três. Paula, aos quatro. Paulo só aos cinco. Nossa diversão era ou ir na escola da minha mãe. As professoras eram muito bacanas. Ou na escola que meu pai era diretor, a molecada era legal mesmo! Fevereiro. Ele estava na Cartilha de Bitu

Bitu bate bola. A bola bate no cavalo. Cavalo corre. Cavalobôbo. A bola bate no soldado. O Soldado fica danado.

As aulas começaram no dia seis de março de 1972, uma segunda. No sábado anterior o Paulo, fez que fez até que conseguiu convencer a minha mãe a ir na escola e ver com qual professora e em qual classe ficaria. Viu e até falou oi para a nova professora: Dona Ana Francisca Estava na Primeira série B. Aulas iniciam às uma hora da tarde!

Seis da manhã, Paulo estava pronto, uniformizado e pronto para sair. Escondemos a lancheira dele para ele não ir e dar “ocafé para o diretor ”. Não almoçou. Meio dia escapou sem a lancheira. — Num tô cum fome!

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A escola do bairro era, andando muito devagar, feito uma lesma lerda, dez minutos de casa! ... e ele foi sozinho, não quis ninguém junto, nem a minha irmã que estudava na segunda série no mesmo horário. Ele foi na frente e muito antes. Toda prosa! Sentindo-se um tremendão. Neste mesmo dia, também à tarde, iniciei a minha vida escolar em uma escola estadual do centro, quinta série. Tinha que ir de ônibus.

Escola grande. Onde eu era um dos maiores na escola do bairro, ali era um dos menores. Fiquei um bobão!! Perdi um tempão no pátio procurando a minha fila. Por fim, descobri que na quinta série não tinha mais filas e aos sábados podia ir na escola sem o uniforme. Susto. Temores. E fiquei amigo do Anselmo, do Nilson, do Mauricio e do Alberto.

Terminado, voltei num corisco, precisava saber como foi o primeiro dia de aula do meu irmão. Quando cheguei, ele estava calmamente vendo televisão, a novela: Meu pedacinho de Chão. — Como foi?

— O que?

— Paulo?!? O seu primeiro dia de aula? 

— Venham jantar! Não esqueçam de lavar as mãos — ordenou a nossa mãe e como o último era a mulher do padre, Paulo chegou bem depois. 

Como sempre, com risco eminente e real de não ver televisão pela vida toda: mastigamos devagar, com a boca fechada, comemos tudo do prato e não brigamos. Também ninguém falou nada, pois no meio do jantar chegou o meu pai e contou as peripécias da escola naquele dia. Primeiro dia de aula não foi fácil para ninguém.

Percebi que não adiantava cercar. Paulo é cabeça dura. Quando assistia o episódio do Ultra Man no canal 13, ele veio contar (só depois que acabar o episódio). Ele foi acabrunhado no nosso quarto. — Tá ... como foi?

— Você sabe que eu fique no meio do pátio, perto de onde fazem a fila. Sabia disso por que a Paula me falou. Tava ali, com um olho na escada, esperando a professora e no outro no lugar, pois eu queria ficar no meio. De repente: “ Ei, pretinho? Ei?” Até achei que era o Tio Joãozinho, mas lembrei que ele está sumido a um tempão. Fique comigo ali, quieto, fazendo conta. 2 x 1 = 2. 2 x 2 = 4. 2 x 3 = 6. 2 x 4 = 8. Quando novamente ouço, mais alto. “Ei, ocê de uniforme, Ei pretinho!”. Era comigo mesmo. Só podia, pois, tinha visto, eu era o único de uniforme. Virei e vi que era um grandão que tinha estudado com você, o Mauro. Ele repetiu, né?

— Sim ... repetiu ...

— Então eu olhei e achei melhor não falar nada. 2 x 5 = 10, 2 x 6 = 12, 2 x 7 = 14, Novamente: “Preto! Você é surdo”. Meu, o cara era muito bocomoco! E ficava gritando! Fiquei bravo. 2 x 8 = 16. 2 x 9 = 18. 2 x 10 = 20. 3 x 1 = 3. 3 x 2 = 6. E um moleque veio e me cutucou: “O Mauro está chamando você” A gente sabe que ele é lelé da cuca. Fui andando devagar até perto dele. Olhando para onde correr, onde estava a Paula e se gritasse ela viria me acudir. Pensava em fazer as três coisas.. 3 x 3 = 9. 3 x 4 = 12. Regra de ouro: Usou a mão perdeu a razão. Fui tremendo. Porém lembrei de um poema que o papai sempre declama: Sou Negro meus avós foram queimados pelo sol da Áfricaminh`almarecebeu o batismo dos tambores atabaques,gonguêse agogôs.Não era as palavras do Mauro, preto, pretinho, negro, negrinho não é xingo para a gente. Mas o jeito que ele falava era bem ruim. Meio que chamando a gente cocô de cavalo ou coisa pior. Cheguei bem perto e disse: Pretinho só me chama o meu tio. Preto é cor. Sou negro de cor e gosto que me chame de Paulo, prazer. E fui voltando de costa para o meu lugar. O Mauro ficou com cara de tacho e disse: “Só queira saber se você é irmão do Joair”, fiz sinal de positivo e ele finalizou: “ O cara é papo firme”

— E depois?

— Logo a professora mandou a gente a fazer a fila. Cantamos o hino nacional e subimos.

— Tá! E depois

— A Aula foi chata pra caramba. Já sabia de tudo!

Quem é Plínio Camillo

plínio camillo
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Nascido em Ribeirão Preto em 26 de novembro de 1960, reside em SãoPaulo, capital, desde 1984, tendo vivido em Santo André, Piracicaba e Campinas. Escrevinhador. Ator, consultor literário,roteirista, diretor teatral, palestrante,consultor educacional, oficineiro, educador social.

Apresentador do programa do YouTube : Notas de Escurecimento

Alfarrábios (blog Literário): clique aqui

Livros publicados:

  • PRETOS EM CONTOS - Jovem – coletânea de contos (organização e participação) – Editora Mondru – no prelo
  • ORUN E O AIYE - CAROLINA E ABDIAS – coletânea de contos (organização e participação) – no prelo
  • ROSAS PARA MARIELLE. – coletânea de contos (organização e participação) – no prelo

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